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segunda-feira, 20 de abril de 2015

Teatro - "Horário Nobre"



Para quem a vida anda fácil? Além dos políticos brasileiros, é claro...! Depois de um dia de jornada de trabalho, ele chega em casa, arruma suas coisas, faz a sua assepsia, prepara o seu jantar e depois busca o seu merecido descanso.

Tudo normal, se o cenário não fosse um minúsculo cômodo, quem sabe em qual favela da cidade. A labuta se dá recolhendo lixo, ou melhor, coletando sucata, o jantar é composto por um pó diluído em água aquecida num pequeno fogareiro improvisado com as grades de um carrinho de supermercado (engenhoso, por sinal), e mais tarde vem um sanduíche de mortadela. O banho fica por conta de uma breve mão de água pelo rosto e dorso, mas a camisa para dormir é trocada. Hábitos que sugerem, possivelmente, tratar-se uma pessoa que veio de uma casa de família, onde se cultivavam, também, costumes morais além do asseio, o que se nota pelas reações que o homem tem ao longo daquela noite que acompanhamos com ele.

Além da plateia que o observa, a companhia de um garoto, do tipo adolescente crescido de cabelo verde, bermuda rasgada sobre a calça velha, escura e suja. Braços, pés e mãos pretas, não de cor natural, mas encardidos com uma sujeira impregnada na sua pele, nas suas unhas. Rosto igualmente marcado pelas aventuras ou desventuras que ele vive em seu cotidiano, sujo e com cicatrizes finas, lembrando uma navalha que o riscou de leve, mas sendo capaz de deixar um traço eternizado na pele e na alma.

A relação entre os dois – Zé e Rato - se revela ao longo de um diálogo em torno do mais novo objeto da casa, cuja origem é questionada e se torna motivo de ofensas e provocações, devolvidas à altura: “trombadinha”, “ladrão”, “bicha”, “bichona”, e... “bicha velha” (e aeee), são algumas das expressões usadas entre os amigos que discutem naquela noite muito mais do que “de onde veio isso”.

O nome da peça revela o tal objeto misterioso que se torna o pivô da briga: uma televisão antiga e quebrada, que não funciona, mas custou tudo o que o garoto tinha naquele dia. Ficou sem ter o que comer, mas alimentou o sonho de ser como os artistas da TV e fazer algo que todos iriam assistir e gostar, ser um astro, mudar de vida para sempre. Fácil assim. Nada na geladeira (que geladeira?), mas tudo na televisão: sonhos, esperança, a ilusão de ser feliz.

Saí de lá pensando: que poder é esse que a mídia tem de influenciar pessoas nesse nível, a ponto de fazerem trocas insanas (como essas e outras) ou de simplesmente acreditarem tanto no que vem dela?

A televisão se torna para aquele personagem algo a ser adorado, idolatrado, e para o qual ele sacrifica seu pão do dia, ou seja, o seu salário que dava apenas para se alimentar. E a maneira como ele defende o seu novo ídolo é impressionante, pois levantam-se ameaças de violências e até de morte. O quão banal se torna a vida humana em meio a uma crise de nervos provocada por uma ilusão?!

Quais são os valores que um veículo comunicação, como a TV, nos tem ensinado a cultivar nos dias de hoje? Não é este o seu papel, mas não se pode negar o quanto esses meios nos influenciam de alguma forma. Igualmente se dá o conservadorismo* no qual alguns se agarram deixando de acompanhar as evoluções que buscam aproximar pessoas por meio de exemplos de tolerância, respeito, consideração e civilidade, como gestos democráticos.

O que nos falta, então? Cultura? Informação? Educação para a cidadania? Paciência? Aceitação? É bom lembrar que a tecnologia abriu um portal eterno para a globalização, o que significa estar em vários lugares, ainda que de forma virtual, entrar em contato com o diferente, com o novo, e nem sempre aquilo que é comum aqui é comum ali, o aceito aqui pode não ser aceito ali, e da mesma forma o que mais tem valor é saber enxergar as diferenças, de toda espécie, e manter acima de tudo o respeito seja por quem for, a todo tempo.

Com o tal avanço tecnológico, parece que nem todas as mentes foram capazes de acompanhar as evoluções que decorreram. Há um ditado, se não me engano árabe, que diz que o homem evolui a passos de camelo...não dá para esperar que todos avancem por igual, nem a uma velocidade que acompanhem a tecnologia.

E como ficam as relações humanas? E como fica a relação de Zé e Rato?  Um quer dormir para acordar cedo e voltar ao trabalho, o outro quer uma grana emprestada para fazer funcionar não apenas uma televisão, mas a sua fábrica de sonhos... Haverá um acordo possível ou podemos esperar por uma tragédia?    

Por isso a provocação inicial: para quem a vida anda fácil? E como podemos melhorar a situação atual, uma vez que ninguém é perfeito? Será que a TV responde?

Quem leu até aqui não imagina o quanto estou me contendo para não comentar o final, assista a peça para falarmos sobre isso depois....!!!!!


Teatro Minimalista

O texto de Paulinho Faria trabalha a dificuldade que o ser humano tem de suportar o outro quando as ideias são divergentes. Ponto de vista interessante quando se entra no ambiente em que os personagens estão e o público divide os olhares entre os objetos de cena do quarto onde vivem Zé e Rato. Elementos incomuns para quem frequenta salas de teatro mais luxuosas, com poltronas estofadas de veludo, carpete no chão e paredes revestidas de elementos que proporcionam uma boa acústica ao lugar, ou luzes que geram um efeito especial, além de cenografia impecável, colorida e tão atraente aos olhos.

Se você espera ver algo assim, nesse não - aviso que a visão será outra. A descrição inicial não pretende afastar o público da cena, muito pelo contrário, a ideia central é mexer com os sentidos por meio de uma verdadeira experiência sensorial de visão, audição, olfato e não apenas pelo que se vê, mas vivenciando momentos em que os atores nos colocam em contato com a sua escuridão.

Trata-se de um desafio impressionante, curioso, muito distante do nosso dia a dia, e por isso mesmo se torna tão atraente acompanhar de perto o dilema que os dois personagens travam naquele começo de noite e ver de perto as suas reações quando provocados e ofendidos, na mesma proporção.

A experiência sensorial e a aproximação do público com o enredo resumem o principal intento do teatro minimalista, conceito que o autor da peça “Horário Nobre” segue há alguns anos, tanto em seus textos, os quais encena, como ensinando em oficinas de teatro.  Paulinho Faria também assina a direção do espetáculo com Elisa Fingermnn, que, além de talentosa, nos cativou com sua simpatia ao receber seu público no espaço Contraponto, que tem lindas e enormes obras de arte no saguão.

Além do texto e da interpretação dos atores, outros elementos podem compor o “espírito” do teatro minimalista, como o excelente trabalho de maquiagem - no caso de “Horário Nobre”, feito por Vanessa de Souza Barbosa, que me impressionou com cicatrizes e sujeira no corpo dos atores, descritas acima - como o cenário e o figurino das peças, que, quando acontecem em espaços menores, causam ainda mais impacto no público, que parece se sentir dentro do cenário, participando da cena.

Experiência foi o primeiro termo que usei para comentar a peça, minutos depois que ela acabou. Reflexão foi o segundo! O texto de Paulinho Faria nos provoca exatamente isso, torna-se impossível não sair de cada trabalho dele sem um balaio mental cheio de perguntas, muitas sem respostas, mas que cumprem a missão de nos incomodar, nos tirar do lugar comum e exercitar a indagação, a revisão dos meus próprios pensamentos prontos, meu próprio conservadorismo ou meus pecados ocultos, e quem não os tem?  




  Antonio Destro e Paulinho Faria (divulgação)


Texto inteligente é assim, nos faz pensar e querer que mais pessoas aceitem o convite-desafio para vivenciar uma nova experiência, vendo Paulinho Faria em cena, dessa vez o ator Antonio Destro, que está ótimo, com o preconceituoso senhor que não suporta ser chamado de bicha. Por que será??? Bincadeirinha, Zé...! Você já viu Destro na TV, creio que a escolha por ele foi feliz, pois deu o tom certo da comédia dramática, ele está bem convincente como o cara bravo e sofredor, e, ao mesmo tempo, nos faz rir contracenando com o garoto Rato (que apelido mais simbólico, heim?!). Outra dica, para quem não achou muito atraente a ideia de se ambientar num barraco de favela daqueles: é bom saber que tem muita mulher pelada e palavrão na peça. A briga é feia!!!

Escreveria mais 03 laudas sobre a peça, mas deixo o link de outros textos incríveis e inteligentes de Paulinho Faria, ator presente nas melhores peças de teatro que assisti nos últimos tempos:





http://talitacomunica.blogspot.com.br/2010/07/peca-hipoteses-para-o-amor-e-verdade.html


*Termo citado em conversa com o autor, muito bem lembrado por ele.






                                                

“HORÁRIO NOBRE”

Ficha Técnica:

Texto: Paulinho Faria
Elenco: Antonio Destro e Paulinho Faria
Direção: Paulinho Faria e Elisa Fergmann
Assistência de direção e iluminação: Mariana Rezende
Cenografia: Marcelo Maffei
Maquiagem: Vanessa de Souza Barbosa
Figurino e Produção: Cia Contraponto
Assessoria de Imprensa: Pedro Autran
Arte gráfica: Elisabeth Agnello

SERVIÇO:

LOCAL: Espaço Contraponto – Rua Medeiros de Albuquerque, 55 – Vila Madalena (entre as estações do Metrô Vila Madalena e Fradique Coutinho)
DATA: Até 30/05
HORÁRIO: Sextas, às 21:30 e sábados, às 21:00
VALOR: R$30,00 (inteira) e R$15,00 (estudantes e bicicletas – o local tem vagas para bikes)
RESERVAS: ciacontraponto@gmail.com ou pelo celular (11) 987277338



OBS: É bom reservar seus lugares, pois quando fui a casa estava lotada!!!


Talita Godoy
20/04/2015


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