Jornalismo e Memória*
Entre as várias vertentes da função social do jornalismo, uma delas se destaca por cuidar do tempo, ou seja, de não permitir que a história se perca no passado, sendo sempre trazida ao presente, de forma significativa, ultrapassando as barreiras da pressa, da velocidade ou da vida líquida, como criticada por Bauman: “Velocidade, e não duração é o que importa. Com a velocidade certa, pode-se consumir toda a eternidade do presente contínuo da vida terrena” (BAUMAN, 2007:15).
Palácios (2010) ressalta a diferença entre história e memória apoiando-se em autores como Sodré (2009) e Nora (1993) esclarecendo que história é uma representação do passado, já a memória é um “elo vivido no eterno presente” (PALÁCIOS apud SODRÉ, 2010:39), enquanto Nora (PALÁCIOS apud NORA, 2010:39) diz que é preciso criar um lugar de memória, ou seja, eventos que tragam o passado à memória nos fazendo relembrar algo.
A importância do jornalismo está, portanto, no duplo lugar ocupado por ele na história: “espaço vivo de produção da Atualidade, lugar de agendamento imediato, e igualmente lugar de memória, produtor de repositórios de registros sistemáticos do cotidiano, para posterior apropriação e (re)construção histórica” (PALÁCIOS, 2006:40).
Vilas Boas (1996) cita que algumas revistas, como Life e Realdiae, lançaram mão do conto, mas não faziam literatura em suas reportagens. E compara que para o redator o uso da palavra é utilizado para expressar seus pensamentos e realidade, mas para o escritor ela é livre, podendo fazer e desfazer, sem o compromisso do redator com o real. Assim, o jornalismo torna-se um registro da memória:
De certa forma, os meios de comunicação impressos acabaram tomando o lugar do livro, principalmente no Brasil, onde o jornal serve como livro de texto. É um resumo dos conhecimentos humanos e acontecimentos do momento. Como categoria estética literária, a linguagem jornalística se caracteriza pela correção, clareza, precisão, harmonia e unidade (VILAS BOAS, 1996: 59).
Um dos exemplos vivos desta vertente do jornalismo como função social está no fato de que a revista Realidade era referência de comportamento para o seu tempo, influenciando diretamente uma geração de leitores e ainda o é, ao passo em que suas edições são retomadas para estudos freqüentes sobre como era aquela época, aproximando passado e presente, sendo arquivo de dados e ao mesmo tempo mecanismo de ativação da memória.
Outras funções sociais são citadas por Melo (2006) quando nos primórdios do jornalismo acadêmico, por volta dos anos 1950, ele já era considerado como o “quarto poder”; em 1960 surgem os comentários sobre a “lei da imprensa” e reflexões sobre o alcance social do jornalismo:
Este é um período em que o entusiasmo pela reflexão e pelo debate sobre o alcance social da atuação da imprensa e os limites éticos da ação dos profissionais do jornalismo no conjunto da sociedade brasileira, produz o resgate do “moralismo” (tão ao gosto dos políticos udenistas) de Rui Barbosa, no seu famoso discurso sobre “a imprensa e o dever da verdade”, que encontra em Carlos Lacerda não apenas um exegeta brilhante, mas sobretudo um divulgador apaixonado e um arquiteto habilíssimo da nova doutrina liberal sobre a ‘missão da imprensa’ (MELO, 2006:21).
Por outro lado, surgiam pensadores que questionavam as liberdades da imprensa em relação aos interesses comerciais que poderiam se envolvidos numa relação empresarial. Tais limites se davam no âmbito ético e moral ou legalista, mas os estudos da época prosseguiam no sentido de reafirmar a função social do jornalismo em noticiar temas importantes como serviço público, favoráveis ao desenvolvimento social e econômico (MELO, 2006:22).
Após o Golpe Militar de 1964, muita coisa mudou no jornalismo nacional. As escolas, como conta Melo (2006), passaram a analisar novas formas de padronizar a notícia para evitar constrangimentos com a censura, porém, de forma bem vista pela curiosidade e entusiasmo com o novo em termos técnico-editoriais.
Mais uma vez a revista Realidade se destaca como produto de memória, pois também sofreu com as perseguições da censura, mesmo antes do AI-5, como mencionado anteriormente.
E não foi apenas sobre os veículos comerciais que a censura exerceu hegemonia: mesmo em relação às produções acadêmicas havia controle. Algumas produções da USP, como “Técnica de LEAD”, em 1972, do mesmo autor consultado na produção deste artigo, Melo (2006), foi censurado embora fosse um “referencial didático para alunos de jornalismo da ECA – USP” (MELO, apud MELO, 2006:26). Somente no final da década de 1970 as produções técnicas, de cunho acadêmico, voltaram aos poucos a circular.
O medo de ser considerada “subversiva” fez com que muitas publicações deixassem de ser produzidas como planejadas ou desejadas originalmente. Desta forma a própria revista Realidade também foi se descaracterizando até deixar de ser o que era inicialmente, perdendo o interesse em sobreviver por muito mais tempo sob censura. Pensando numa provável substituição de produto editorial, a Revista Veja surgiu em 11 de setembro de 1967, pela Editora Abril. As duas caminharam em paralelo até 1976, fim da revista Realidade.
CONCLUSÃO
Apesar de questões relacionadas à objetividade, sempre estejam no limiar entre a ética e o interesse do veículo, quando o jornalista assume seu papel como ator social ele pode e deve ser o mediador entre os fatos e a cidadania, ao passo em que observa a realidade, seleciona os acontecimentos que sejam de interesse público e os divulga com intenção de informar.
Melo (p. 50, 2006) relaciona três valores para esta mediação do jornalista: a veracidade, a clareza e a credibilidade, tendo com árbitro desta objetividade o próprio leitor cidadão, com sua capacidade crítica de observar, analisar, comparar e até mesmo confrontar suas idéias com o descrito pelos jornalistas ou entre os diferentes veículos que trazem informação semelhante.
É questionável como se dá o desenvolvimento deste senso crítico do leitor, porém, ele determina o quanto um veículo de informação poderá influenciá-lo. Esta capacidade foi amplamente exercida nos primeiros anos da revista Realidade, mas logo passou a ser polida pela censura.
Nos dias atuais a prática está em risco pelo excesso de informações que surgem diante do público, especialmente para o internauta. Contextualizando a qualidade no presente, Vilas Boas (1999) alerta sobre a notícia em novos tempos: “A informatização não garante a qualidade da informação. Para não robotizar o homem e o veículo, é preciso criatividade. Não apenas na forma, mas também, e principalmente, no conteúdo” (VILAS BOAS, 1996:107).
A responsabilidade primeira, de exercer uma atividade jornalística com qualidade, está nas mãos do jornalista e do veículo para o qual ele trabalha. Responsabilidade de quem é mediador da notícia, de quem exerce o quarto poder - que é o da informação - com função social apta a influenciar uma geração de cidadãos consumidores da sua notícia.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.BUITONI, Dulcília Helena S. Mulher de Papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009.
FARO, José Salvador. Revista Realidade 1996-1998: Tempo de reportagem na imprensa brasileira. Rio Grande do Sul: ULBRA/AGE, 1999.
MAIA, Monica. Realidade – a que a censura destruiu. Revista de Comunicação. São Paulo, 18 de out. 1989. Disponível em < http://www.revcom.com.br/rc/rc0.asp > Acesso em 06/01/2011.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. América Latina e os anos recentes: o estudo da recepção em comunicação social. IN: SOUSA, Mauro Wilton de (org.). Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. Pág. 39 – 68.
MELO, José Marques de. Teoria do Jornalismo: identidades brasileiras. São Paulo: Editora Paulus, 2006.
PALÁCIOS, Marcos. Convergência e memória: jornalismo, contexto e história. In: Revista Matrizes, Ano 4, N.1, São Paulo: JOHN B. THOMPSON, 2010.
SILVA, Carmem da. Preconceito: o bicho-papão, in: REVISTA REALIDADE. São Paulo, Editora Abril, n.11, fevereiro, 1967.
REVISTA REALIDADE. São Paulo, Editora Abril, números 10, 11, 18 e 19, 1967.
VICCHATTI, Carlos Alberto. Jornalismo: comunicação, literatura e compromisso social. São Paulo: Paulus, 2005.
VILLAS BOAS, Sergio. O estilo magazine: o texto em revistas. São Paulo: Summus, 1996.
WOLF, Tom. Radical chique e o novo jornalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
POR: TALITA GODOY
JULHO/2011
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