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sexta-feira, 15 de julho de 2011

Jornalismo com Função Social (2/3)



Efeitos Sócio-Culturais*

     A revista Realidade contou com o talento de repórteres que atuavam como autores capazes de transcrever a vida real de forma diferenciada e única - especialmente quando o assunto era polêmico - focou personagens comuns que revelavam um Brasil desconhecido. Uma nova leitura que estabeleceu uma relação entre produto e consumidor. A adoção deste novo gênero buscava retratar um período de mudanças importantes para a sociedade.

Martín-Barbero (1995) define os gêneros como estratagemas da comunicação, diretamente ligados aos movimentos sociais:

O gênero é um estratagema da comunicação, completamente enraizado nas diferentes culturas, por isso, geralmente, não podemos entender o sentido dos gêneros senão em termos de sua relação com as transformações culturais na história com os movimentos sociais. Os gêneros têm muito a ver com os movimentos sociais (MARTIN-BARBERO, 1995:65).

Numa volta ao tempo, encontra-se nos anos 60 uma época em que o realismo teve grande poder de influência no leitor, técnica vista por Wolfe (2005) da seguinte forma:


"A força psicológica, moral, filosófica, emocional, poética, visionária (podem-se fornecer tantos adjetivos quanto for preciso) de Dickens, Dostoievski, Mann, Faulkner, só existe porque eles primeiro conectaram seu trabalho ao circuito principal, que é o realismo" (WOLFE, 2005:58).

Wolfe (2005) compara a introdução do realismo na literatura como sendo “a introdução da eletricidade na tecnologia da maquinaria” (WOLFE, 2005:58). E acrescenta que não foi apenas mais um recurso - para o jornalismo, deu aos jornalistas uma grande vantagem técnica. Para Wolfe (2005, p. 50), “os costumes e a moral foram a história dos Estados Unidos”, rotulando para sempre a década de 60 como uma época de contracultura, ruptura de paradigmas, permissividade sexual, do abandono de comportamentos tidos como adequados. Surgiram outras interpretações para assuntos polêmicos.


De forma semelhante, o mesmo aconteceu no Brasil e também nos outros países onde chegou a revolução da tecnologia em áreas como medicina e saúde, nas artes, na astronomia, na informática, levando as pessoas a um novo comportamento a partir destes avanços tecnológicos, como por exemplo, o uso da pílula anticoncepcional, que possibilitou a liberação sexual feminina. Este novo padrão de comportamento trouxe outros avanços sócio-culturais. No caso do Brasil, fez levantar questões como o desquite, o divórcio, o aborto, a mãe solteira, virgindade, fidelidade conjugal, e diversos outros tratados nas muitas edições da revista Realidade, que foi uma das primeiras a inovar também na divulgação de pesquisas feitas com o público leitor.


A primeira edição especial da revista Realidade que contou com a participação pública respondendo ao questionário, foi a de número 10, em janeiro de 1967, e teve 1200 mulheres que se voluntariaram. Já na segunda edição, de número 18, especial voltada aos jovens, em setembro de 1967, contou com a participação de aproximadamente 20.000 questionários respondidos compondo as pesquisas feitas.


Um dado interessante sobre os bastidores da edição número 18 é uma foto publicada na Edição 19 mostrando a redação lotada de papéis, cartas e cartões-resposta que foi publicado na edição 17 para que o leitor a respondesse e a enviasse de volta à redação. Alguns fizeram cópias para reproduzir o encarte e distribuir para mais pessoas, como aconteceu em Pernambuco, Salvador e Teresópolis, no Rio de Janeiro (Realidade, Edital da Edição 19, 1967:3).


Vilas Boas (1996:105) relembra que a revista pretendia desvendar o mundo do jovem universitário para concluir se ele era de fato tão subversivo como levava a fama, e para isso convidou Alberto Libânio, mais tarde conhecido como Frei Beto, que aos 22 anos, passou um mês convivendo com os jovens de uma universidade em Belo Horizonte. Como resposta, “Libânio extraiu, com simplicidade, a essência de uma época inquieta, em franca transformação” (VILAS BOAS, 1996:106).


Assuntos polêmicos ou preconceituosos, tendo por alvo a mulher, centro de tantos tabus, causaram a apreensão da edição especial voltada a ela, número 10, em janeiro de 1967. O posicionamento da revista Realidade sempre foi o de tocar nestes pontos a fim de trazer uma visão realista, como definem seus editores:


"Desde nosso primeiro número, em abril de 1966, manifestamos a opinião de que a única maneira de resolver problemas é enfrentá-los. E nos meses que se seguiram, a jovem equipe que faz esta revista procurou não perder de vista as dúvidas e problemas que são continuamente levantados, ponderados e debatidos no Brasil inteiro. A recepção foi entusiástica: em apenas seis meses, REALIDADE alcançou a maior tiragem do país, com 475.000 exemplares e mais de um milhão e meio de leitores por edição. (...) Assim, embora pretendamos continuar debatendo os grandes problemas nacionais, devemos supor que – de repente – não mais vão aparecer moças menores e grávidas diante dos juízes de Menores. Que a esmagadora maioria das jovens chega virgem ao casamento. Que mulheres casadas jamais apelam para a interrupção intencional da gravidez. Que há unanimidade da opinião pública a favor do desquite como melhor solução para um casal que vive sem amor. E que – enfim – todos estes problemas só voltariam a existir se e quando fossem novamente levantados por Realidade" (Editorial, Edição n. 11, 1967).



SILÊNCIO E PRECONCEITO

Na edição número 11, a jornalista Carmem da Silva escreve para a seção “Problema”, abordando a razão dos preconceitos. De forma sutil e inteligente, ela começa falando de filosofia, mostra os preconceitos violentos sofridos por Sócrates, Galileu e os preconceitos fanatizados de Hitler e Goebbels. Sobre eles, o preconceito e o interesse de alguns.


Segundo Carmem da Silva: “para afirmar um preconceito é preciso cercá-lo de um ar sagrado, que torne sacrílegas a análise e a discussão em termos racionais” (Edição 11, 1967:27). Silva explica claramente aos leitores da revista Realidade que há por trás de todo preconceito interesses em se deixar determinada situação como ela é, isso por que estas pessoas são favorecidas pelo sistema vigente nas atuais condições:

Talvez tivessem uma ou outra restrição miúda a fazer, mas preferem não modificar nada porque uma mudança traz outra, a evolução age em cadeia e ao alterar esta ou aquela faceta adversa, correriam o risco de vir a perder tudo o que lhes é propício. O imobilismo fica sendo, assim, a posição mais segura: a ela se apegam com unhas e dentes, a ela tratam de atrair o maior número possível de adeptos. O resultado é a recusa sistemática em examinar os dados objetivos da realidade: querendo-a estratificada, coagulada, pétrea, negam seu caráter essencialmente fluído e opõem-se a qualquer tentativa de dinamizar e aperfeiçoar as instituições existentes (SILVA, Edição 11, p. 29, 1967).

Silva (1967) cita o aborto, as inscrições de prostitutas na polícia, as doenças venéreas que aumentam nos homens, desquites, homossexualidade. Assuntos polêmicos, que desta vez não foram censurados. Talvez porque ela elucida estas questões como sendo necessárias: porém sem “tornar válido o erro, nem codificar o mal, mas sim equacionar os problemas com realismo, sem perder a perspectiva do bem estar coletivo e da virtude socrática, associada à verdade e ao conhecimento” (SILVA, Edição 11, p. 29, 1967).


Ainda numa linha em que se procura justificar a postura da revista, na parte final do seu texto, Silva (1967) fala sobre a família, suas origens e conclui citando o sexo como sendo assunto – na opinião de uns e outros – indevidos às crianças, pois elas ainda não têm maturidade para compreender estes fatos; como se outros assuntos, como política ou o noticiário bélico fossem temas dirigidos a elas:

"Cabe aos pais não deixar ao alcance dos filhos o que possa impressioná-los desfavoravelmente ou feri-lhes a inocência. Sem dúvida a sociedade deve substituir os pais junto aos órfãos e desamparados. De qualquer forma, se proibirmos aos adultos, tudo o que for impróprio para crianças, acabará não havendo mais crianças – o que é uma pena" (Edição 11, p. 29, 1967).
Na edição seguinte àquela apreendida, onde o foco era a mulher, pouco se tratou de assuntos polêmicos. Os demais foram: futebol, astronautas, músicas do carnaval, igreja católica na Holanda, e outros que não davam margem a tantas críticas.


Foi desta forma, com o aumento da censura até sua efetiva determinação com a vinda do AI-5, que a revista Realidade passou por certos polimentos que a descaracterizaram, até que ela não resistisse, fosse perdendo seus talentosos repórteres e o seu vigor inicial. Deixou de existir 10 anos após sua fundação. Fatos como a apreensão da edição número 10 e a publicação de uma pesquisa tão abrangente como na edição número 18 fizeram dos seus dois primeiros anos um período especial para a história do jornalismo impresso nacional.


Jornalismo e Função Social


Observando os primeiros anos da revista Realidade, entre 1966 e 1968, nota-se uma franca defesa do direito à informação. Escolher assuntos polêmicos, tabus e preconceitos como temas das suas matérias, fazia com que a revista Realidade optasse por correr o risco de agradar ou desagradar demasiadamente. Ao que tudo indica, ela deu o passo certo, pois suas edições conquistavam um público leitor cada vez maior e participativo.


O exercício da cidadania pressupõe a sintonização com a realidade: e esta advém principalmente dos relatos jornalísticos. O cidadão, para decidir sobre o seu cotidiano e para dele participar conscientemente, precisa saber o que se passa – tomar conhecimento dos dados coletados apurados pelos jornalistas que estiveram no cenário noticioso. E essa necessidade social não se circunscreve absolutamente ao contato com os valores que os jornalistas ou empresários do jornalismo atribuem aos fatos da atualidade (MELO, 2006:48).


Mesmo com o temor da censura, a revista Realidade buscou exercer sua função social no jornalismo trazendo inovação editorial e contribuindo assim com as mudanças sócio-culturais da época. Dar espaço para a mulher como personagem central de uma edição inteira ou mesmo colocar mulheres para pesquisar e escrever também era um privilégio para algumas delas, que aos poucos foram cada vez mais conquistando seu espaço na mídia impressa.


Um dos casos, citados aqui anteriormente, é o número 10 da revista Realidade, lembrado por Buitoni (1990) como “apreendido em nome da moral e dos bons costumes” (BUITONI, 2009:105), cita Carmem da Silva como colaboradora especial nesta edição, no “Consultório Sentimental”, e jornalista responsável pela seção da revista Cláudia, também da Editora Abril: “A arte de ser mulher”, em que buscava dar um tom mais próximo ao de um aconselhamento psicológico do que o convencionalismo dos tradicionais consultórios sentimentais, outro avanço da época que indicava novas formas de se sentir, pensar e se comportar.


Buitoni (1990) constata a inovação da revista Realidade para com o público feminino: “Os temas apresentados nessa Realidade quase nunca surgiam nas páginas da imprensa feminina” (Buitoni, 2009:105). A sociedade conta com os órgãos de imprensa para sua formação de opinião, para informá-lo sobre os fatos de interesse público e com sua imparcialidade, embora certamente duvidosa, emparelhando seus interesses comerciais com os interesses do público leitor.


"A importância do jornalismo está contida na premissa de que precisa ser útil, de modo particular. Precisa dar ao público a sensação de que a vida não é apenas uma sequência de fatos ocasionais. A imprensa fracassa, neste sentido, tratando os assuntos à base de flashes que, instantaneamente, devem fazer com que o povo logo se esqueça e esteja pronto para absorver – e consumir – o que vem a seguir. Os critérios de seleção de notícias são falhos, superficiais. Da maior parte das notícias o público nem toma conhecimento. Estão boiando na superfície e os jornalistas só têm o trabalho de pescá-las. Não se quer dizer com isso que os assuntos que estejam em voga não mereçam discussão, mas, decerto, há vários temas ainda obscuros, que os jornalistas não se dão ao trabalho de investigar. Preferem ficar sob a luz dos assuntos que já conhecem e com os quais têm familiaridade – assuntos estes que não passam meras trivialidades, na imensa maioria dos casos" (VICHIATTI, 2005: 58).


Autores como Vicchiatti (2005), fazem uma crítica ao exercício do jornalismo que já era uma preocupação dos editores da revista Realidade, sair do senso comum procurando tratar das questões polêmicas como uma mediadora que informava ao leitor, como quem busca a raiz dos problemas. O autor ainda cita o caso da política, em que uma parte dos jornalistas se apóiam na tática dos políticos, deixando de lado o mais trabalhoso que seria levar à população informações substanciais quanto às estratégias efetivas de trabalho. Esta falta de empenho, numa elaboração mais apurada das reportagens, compromete sua qualidade final, que será apresentada ao público como informação. Portanto, o jornalista é responsável pela notícia que produz, ainda que toda a filosofia da empresa em que trabalha seja a determinante da objetividade ou não, da imparcialidade ou não, com que o texto é escrito.


O jornalista é, assim, um grande transformador da realidade social em que se insere, cuja ação se inspira numa síntese a ela adequada e que se elabora com as contribuições das áreas significativas do saber, em vista de reais problemas e de verdadeiras aspirações humanas, aplicando, nesta mesma ação, os meios técnicos especializados para sua plena eficácia (VICHIATTI, 2005: 59).


Faro (1999: 32) dedicou-se ao trabalho de analisar a revista Realidade em seus três primeiros anos e de acordo com Vichiatti, ele também concorda que o jornalismo tem esta capacidade e o dever de incorporar o cidadão no processo social, sendo uma mercadoria associada ao padrão cultural do leitor, então considerado o consumidor do produto notícia. Mas o jornalismo não deve ser analisado apenas pelo ponto de vista técnico, e sim como atividade cultural, como vínculo do processo histórico-social de uma nação.



*Leia a continuação, conclusão e referências bibliográficas abaixo, no texto 3/3.


TALITA  GODOY
JULHO/2011

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