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domingo, 2 de outubro de 2011

1967: A mulher brasileira na revista Realidade - Artigo - Parte I

   


RESUMO
Algo inédito aconteceu na imprensa brasileira em janeiro de 67 quando a revista Realidade dedicou uma edição especialmente à mulher. Alvo de assuntos polêmicos, preconceitos e tabus, ela foi ouvida, revelou seus desejos e verdades, teve seu perfil traçado em mais de 140 páginas. A edição foi cassada pela censura militar, por meio do juizado de menores de São Paulo. O presente artigo relata estes e outros fatos marcantes em torno da edição 10 e trata da imprensa feminina no Brasil com citações de Heilborn, Mira e Lipovetsky.
 
Palavras-chave: censura; imprensa feminina; mulher; revista Realidade; tabus.
 
INTRODUÇÃO
  Este artigo trata especificamente da edição Nº 10 da revista Realidade, editada em Janeiro de 1967, pela Editora Abril, em território nacional. A edição inédita trazia ao público o resultado de uma pesquisa que tabulou mais de cem mil respostas dadas por 1200 mulheres entrevistadas com a finalidade de retratarem o perfil da mulher brasileira do final dos anos 60. Os assuntos abordados eram variados, indo desde religião e política até mercado de trabalho, passando pelo corpo feminino, a maternidade, o parto em si e questões como o que ela pensa e como age frente às decorrentes mudanças do seu tempo.
Apesar de ter conseguido um feito inédito no Brasil ao traçar o mapa da situação feminina da época, não agradou a todos. Entre críticas e opiniões contrárias, a Edição foi acusada pelo moralismo e conservadorismo da sociedade, que rejeitou a revista por publicar - segundo o seu julgamento - conteúdo considerado abusivo. Contudo, os leitores fiéis, interessados no posicionamento da revista, manifestaram seu apoio, como visto adiante.
Este estudo partiu do exemplar Nº 10, seguido da edição Nº 11 que apresentou os fatos da apreensão, da defesa da Editora Abril e dos comentários diversos dos leitores. Além da fonte primária, foram consultados autores como Faro e Maia; na segunda parte deste artigo, utilizou-se como fonte secundária autores que tratam da representação da mulher na mídia em geral, ressaltando a contribuição da revista Realidade para um jornalismo com função social.
EDIÇÃO Nº 10
A capa foi estrategicamente elaborada com a imagem de uma mulher jovem, de traços leves, numa foto em que ela é vista, ou evidenciada, por uma lente de aumento, dando a ideia de ampliação, ou seja, em foco representando a mulher em destaque. Abaixo da foto, em letras de cor em realce, vem o tema da edição especial: “A mulher brasileira, hoje”. E do lado esquerdo, os destaques daquela edição, na seguinte ordem:
  • Pesquisa – o que elas pensam e querem
  • Confissões de uma moça livre
  • Ciência: o corpo feminino
  • Eu me orgulho de ser mãe solteira
  • Por que a mulher é superior
  • Assista a um parto até o fim
Além de dedicar uma edição inteira a um tema específico, a revista Realidade inovou na editoração, pois em revistas de assuntos gerais não era comum a divulgação dos resultados de pesquisas, nem imagens como cenas de um parto, por exemplo, embora não fossem indiscretas, poderiam ser consideradas fortes por serem reais.


No índice da edição Nº 10 (página 05 da revista) estão as seguintes seções, com seu tema resumido aqui:

CAPA: síntese da edição 10 retratando a mulher brasileira em foco
PESQUISA: 1200 mulheres respondem mais de 100 mil perguntas – pág. 20
POLÊMICA: a superioridade natural da mulher – pág. 30
CIÊNCIA: anatomia do corpo feminino – pág. 36
ENSAIO: o amor materno – pág. 46
RELIGIÃO: freiras que atuam para a salvação de todos – pág. 52
GENTE: parteira mostra na prática detalhes sobre o seu ofício – pág. 68
DOCUMENTO: jovem atriz fala tudo o que pensa sobre sexo – pág. 76
PSICOLOGIA: o desengano dos consultórios sentimentais – pág. 82
PERFIL: dona Olga, mãe-de-santo e seus 66 filhos – pág. 88
PROBLEMA: o desfecho de três histórias sobre mulheres desquitadas – pág. 100
ECONOMIA: Ela é o diretor da indústria moderna – pág. 110
DEPOIMENTO: carioca confessa ser mãe solteira, com muito orgulho – pág.116

 
A escolha dos assuntos também pode ser considerada uma provocação para os conceitos da época. Maia (1986) analisa a dificuldade deste pioneirismo em ser a primeira revista no país a tratar assuntos tabus: “logo na décima edição ficou claro que fazer jornalismo abordando temas de comportamento em 1967 era mais que um desafio, era um confronto com o conservadorismo da sociedade brasileira”.
E não agradou a todos, embora a revista tenha mudado a cara do Brasil, na opinião de Maia (1986), estabelecendo a “geração Realidade”, como conhecida nos anos 70. A autora avalia seus efeitos da seguinte forma: “O Brasil de 60 é irreconhecível hoje (anos 80), deu um salto em abertura intelectual, em abertura de informações” (MAIA, 1986).
 
CENSURA: ACUSAÇÃO E DEFESA
Desde o golpe militar, que impôs o militarismo no poder em 1964, houve no Brasil certa interferência em todos os setores. A censura propriamente dita foi instaurada no Brasil numa sexta-feira 13 de dezembro de 1968, com o decreto do Ato Institucional número 5 – o AI5 (AI-5: entre outras regras divulgadas em documentos oficiais, determinava: "censura prévia aos veículos de comunicação que não se alinhassem á ordem preconizada pelo regime militar). A partir daí todos os veículos de comunicação passavam a ter seu trabalho constantemente vigiado. Mesmo antes do AI5, o que se via eram perseguições cada vez mais intensas contra políticos, estudantes, artistas, jornalistas e veículos de comunicação. Algumas atitudes se deram de forma repentina, sem chance de defesa dos acusados, como o que aconteceu na edição especial da revista Realidade.     

Somente na edição seguinte, Nº 11, o leitor compreendeu o que havia acontecido com a edição Nº 10, ou seja, que por meio uma denúncia, de autoria desconhecida, a revista Realidade foi apreendida em São Paulo - por determinação do Juizado de Menores, na alegação de que nela havia conteúdo considerado “abusivo”, “obsceno”, e em alguns casos “ofensivo à dignidade e à honra da mulher” (Realidade, Editorial, 1967: 06).

Contudo, não foi apresentada pela acusação em São Paulo qual exatamente seria a reportagem ofensiva, ou imagem que tivesse causado tanto constrangimento ao público. Isso foi usado como argumento na defesa que detalhou passo a passo cada uma das seções e seu real conteúdo, revelando que as intenções se davam em torno da informação, do construtivo, da educação. No texto oficial de defesa que a própria revista publicou na edição Nº 11, página 06, consta a definição por dicionário das palavras citadas pela acusação, como obsceno e seus sinônimos: “sensual, torpe, impudico; e comparando a sinonímia entre desonesto e obsceno, declara que este vocábulo é muito mais forte do que o primeiro, porque a sua particular energia é significar o que é sujo, imundo, sórdido, torpe, etc” (Realidade, Editorial, 1967: 06). Isso tudo para comparar os termos: “obsceno” com “ofensivo à dignidade da mulher” como sendo questão de conceito e não de fato.

Já na acusação do Juizado de Menores do Estado do Rio de Janeiro, que ocorreu 24 horas após a determinação em São Paulo, o texto do despacho afirma que a revista vinha “fugindo aos propósitos comuns de periodismo no Brasil – informar corretamente, divulgar as coisas e ideias dentro do panorama dos nossos costumes, aceitando ou combatendo moderadamente os nossos hábitos e as nossas tradições – resolveu bem ao contrário encetar uma campanha e realizar uma verdadeira revolução radical no terreno da moral familiar” (Realidade, Editorial, 1967: 07).

E mais uma vez a acusação assume o valor da revista Realidade como mídia formadora de opinião, citando-a como “moderna, tecnicamente bem feita, procura apoiar suas reportagens em pesquisas e levantamentos” (Realidade, Editorial, 1967: 07). Porém, logo em seguida afirma que Realidade não apenas apresenta os dados, mas “defende teses, promove campanha aberta e dissimulada” (Realidade, Editorial, 1967: 07) e prossegue enumerando as seções atribuindo a elas as mesmas acusações já citadas. Na defesa, o argumento principal é um exame das seções, e novamente o jogo de palavras que procura esclarecer o real sentido de obsceno, moral e subjetividade. O posicionamento da revista Realidade sempre foi o de tocar nestes pontos a fim de trazer uma visão realista, como definem seus editores:

Desde nosso primeiro número, em abril de 1966, manifestamos a opinião de que a única maneira de resolver problemas é enfrentá-los. E nos meses que se seguiram, a jovem equipe que faz esta revista procurou não perder de vista as dúvidas e problemas que são continuamente levantados, ponderados e debatidos no Brasil inteiro. A recepção foi entusiástica: em apenas seis meses, REALIDADE alcançou a maior tiragem do país, com 475.000 exemplares e mais de um milhão e meio de leitores por edição. (...) Assim, embora pretendamos continuar debatendo os grandes problemas nacionais, devemos supor que – de repente – não mais vão aparecer moças menores e grávidas diante dos juízes de Menores. Que a esmagadora maioria das jovens chega virgem ao casamento. Que mulheres casadas jamais apelam para a interrupção intencional da gravidez. Que há unanimidade da opinião pública a favor do desquite como melhor solução para um casal que vive sem amor. E que – enfim – todos estes problemas só voltariam a existir se e quando fossem novamente levantados por REALIDADE (Edição n. 11, 1967).

Conforme relata Faro (1999), apenas algumas edições depois, Realidade retomaria ao tema, porém desta vez de forma menos explícita: “Realidade voltaria indiretamente à temática dos novos valores femininos nem bem havia assentado a poeira levantada com a apreensão do número de janeiro de 1967” (FARO, 1999:134). Desta vez, em junho de 1967, foi publicada uma reportagem de cunho científico sobre o parto. De forma indireta, citou valores educacionais relacionados à educação sexual feminina.     

PRECONCEITOS E INTERESSES
 
Não se sabe ao certo se a censura teve cunho moralista ou político, não se afirma exatamente quem sairia ganhando com a cassação da Realidade. Fato é que demonstrar sua indignação nas edições seguintes foi uma tarefa necessária, que contou com a inteligência e sutileza de seus repórteres além dos convidados especiais que souberam aproveitar o ensejo para replicar o posicionamento da revista.

Na edição número 11 a jornalista e psicóloga Carmem da Silva (Em 1967, escrevia para a Editora Abril, na REvista cláudia, seção "Consultório Sentimentoal) escreve para a seção “Problema”, abordando a razão dos preconceitos. De forma sutil e inteligente, ela começa falando de filosofia, mostra os preconceitos violentos sofridos por Sócrates, Galileu, e os preconceitos fanatizados de Hitler e Goebbels. Sobre a maioria, o preconceito e o interesse de alguns. Segundo Carmem da Silva: “para afirmar um preconceito é preciso cercá-lo de um ar sagrado, que torne sacrílegas a análise e a discussão em termos racionais” (edição 11, 1967:27). Silva explica aos leitores da revista Realidade que há por trás de todo preconceito interesses em se deixar determinada situação como ela é, isso por que estas pessoas são favorecidas pelo sistema vigente nas atuais condições:

Talvez tivessem uma ou outra restrição miúda a fazer, mas preferem não modificar nada porque uma mudança traz outra, a evolução age em cadeia e ao alterar esta ou aquela faceta adversa, correriam o risco de vir a perder tudo o que lhes é propício. O imobilismo fica sendo, assim, a posição mais segura: a ela se apegam com unhas e dentes, a ela tratam de atrair o maior número possível de adeptos. O resultado é a recusa sistemática em examinar os dados objetivos da realidade: querendo-a estratificada, coagulada, pétrea, negam seu caráter essencialmente fluído e opõem-se a qualquer tentativa de dinamizar e aperfeiçoar as instituições existentes (edição 11, 1967:29).
Silva (1967) cita em seu texto “Preconceito: o bicho-papão” o aborto, as inscrições de prostitutas na polícia, as doenças venéreas que aumentam nos homens, desquites, homossexualidade. Assuntos polêmicos, que desta vez não foram censurados. Talvez porque ela elucida estas questões como sendo necessárias: porém sem “tornar válido o erro, nem codificar o mal, mas sim equacionar os problemas com realismo, sem perder a perspectiva do bem estar coletivo e da virtude socrática, associada à verdade e ao conhecimento” (Edição 11, 1967:29).

Na parte final do seu texto, Silva (1967) comenta sobre a família, suas origens e conclui citando em tom irônico o sexo como sendo assunto – na opinião de uns e outros – indevido às crianças, pois elas inda não têm maturidade para compreender estes fatos; como se outros assuntos, como política ou o noticiário bélico fossem temas dirigidos a elas, ou seja, nada na revista Realidade era escrito propriamente aos menores, embora haja relatos de pais que liam junto com seus filhos no intuito de compartilhar educação sexual. Nas entrelinhas, um convite a refletir sobre atos preconceituosos e hipocrisias. Para Silva (1967), os responsáveis devem manter o controle sobre tudo ao que as crianças têm acesso: 

Cabe aos pais não deixar ao alcance dos filhos o que possa impressioná-los desfavoravelmente ou lhes ferir a inocência. Sem dúvida a sociedade deve substituir os pais junto aos órfãos e desamparados. De qualquer forma, se proibirmos aos adultos, tudo o que for impróprio para crianças, acabará não havendo mais crianças – o que é uma pena (edição 11,1967:29).

Na edição seguinte àquela apreendida, onde o foco era a mulher, pouco se tratou de assuntos polêmicos. Os demais foram neutros, como: futebol, astronautas, músicas do carnaval, igreja católica na Holanda, e outros que não davam margem a tantas críticas. As edições seguintes continuaram com a mesma tiragem, superando cada vez mais o número de exemplares vendidos tendo em apenas 06 meses atingido a maior marca de vendas e praticamente dobrando seus números nos próximos 06 meses.  Mas e quanto à opinião do leitor?

CARTAS DO LEITOR

Como resposta ao ato de censura que apreendeu a edição 10, alguns leitores enviaram à Redação cartas com palavras diversificadas, tanto de apoio como contrárias. Seguem resumidamente os relatos encontrados na edição 11 entre as páginas 10 e 14:

- A revista Realidade está semeando a prostituição; o povo saberá separar o joio do trigo.
Estão vendendo pornografia.

- O “meio conhecimento” em educação sexual é o perigo. Leio a revista Realidade com os meus filhos.

- Incentivo para que a revista Realidade continue abordando qualquer assunto.

- Estabelecer o diálogo é importantíssimo na educação sexual da juventude.

- A revista Realidade vem despertar o pensamento dos brasileiros, avanço considerável dentro da estrutura arcaica em que vivemos.

- Homens que consideram a maneira como vieram ao mundo coisa obscena, não devem sentir respeito por nenhuma mulher.

- A campanha que ora se faz contra essa revista não tem sentido, o que ela nos conta é apenas a realidade.

- Pessoas ignorantes e preguiçosas são as que criticam a revista Realidade, pois se quer a leem ou não a entendem.

- Antes o Juizado de Menores tentasse recolher os “livrinhos obscenos” que circulam por aí.


- Será que a verdade ofendeu aos falsos moralistas?

- Quem é mais digna: a mulher que faz de tudo para criar seu filho ou a que o abandona para manter as aparências?

- Onde está o raciocínio equilibrado ?

- A mãe solteira e a atriz agiram como sentiam que deviam agir. Nem por isso vou fazer a mesma coisa. Precisamos de indulgência para progredir.

- Renovamos nosso protesto diante de atitude tão falsa e hipócrita das autoridades que presidiram tal ato.

- Lamentamos as arbitrariedades que vem se realizando quase sem chances de reação.

- Se existem pessoas de mentalidade tão atrasada, elas em absoluto não representam a maioria.

- Voto de solidariedade da Associação Brasileira de Agências de Propaganda de São Paulo.
Tudo o que é realidade deve ser exposto e discutido.

- A foto tirada pela primeira vez carregando os eu filhinho é de uma força de expressão formidável.


 Uma hipótese para o fato da edição 10 ter sido cassada é o fato de ter a mulher brasileira em foco. O final da década de 1960 era uma época de mudanças de padrões de comportamentos e em sua maioria afetava ou dizia respeito à mulher como a liberação sexual que se deu após o surgimento da pílula anticoncepcional, o aborto, a entrada no mercado de trabalho, a situação da mulher após o divórcio ou a virgindade antes do casamento. Assuntos polêmicos onde ela era o alvo das atenções. Por este torna interessante uma pausa para se rever brevemente algo sobre o gênero feminino na sociedade e na mídia.
OBS: Continua no post a seguir, com conclusão e bibliografia.