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domingo, 2 de outubro de 2011

Artigo - Parte II

(Continuação do artigo: 1967 - A Mulher Brasileira na Revista Realidade)
O GÊNERO FEMININO
Uma hipótese para o fato da edição 10 ter sido cassada é o fato de ter a mulher brasileira em foco. O final da década de 1960 era uma época de mudanças de padrões de comportamentos e em sua maioria afetava ou dizia respeito à mulher como a liberação sexual que se deu após o surgimento da pílula anticoncepcional, o aborto, a entrada no mercado de trabalho, a situação da mulher após o divórcio ou a virgindade antes do casamento. Assuntos polêmicos onde ela era o alvo das atenções. Por este torna interessante uma pausa para se rever brevemente algo sobre o gênero feminino na sociedade e na mídia.
Pode-se considerar que, tanto na sociedade como na literatura, em diferentes culturas a mulher é representada em segundo plano, sempre associada ao cuidado com a casa e com os filhos, atuante apenas em esfera doméstica, privada. Com o passar do tempo surgiu uma distinção do termo “gênero feminino” que antes se referia apenas como sexo feminino, porém agora se vê como categoria relacional, no sentido social do termo.

Heilborn (1990) analisa a questão do gênero feminino como categoria sociológica e ressalta a importância da reflexão sobre a mulher e sua condição assistida pela sociedade burguesa num sistema ideológico. “A matriz simbólica que faz emergir o questionamento de papéis de gênero enraíza-se no que se convenciona chamar dentro da teoria antropológica de individualismo” (HEILBORN, 1990:02). Individualismo, como ideologia, é considerado como a base da construção do social, assim como o seu eixo, portanto, na modernidade o indivíduo é tomado por valor mestre da organização social.
Ainda segundo Helborn (1990), a condição feminina é tratada como assimetria sexual, fenômeno característico da sociedade burguesa, bem demonstrado no capitalismo, em que no mercado de trabalho – ou esfera pública - a mulher é força produtiva individual, um indivíduo que vende sua força de trabalho, mas na esfera privada ela ainda é vinculada aos deveres domésticos e de procriação. Nessa jornada, e com todos os retratos feitos a partir da imagem da mulher, em seus estudos Heilborn (1990) propõe o “gênero” como “distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica dos seres humanos” (HEILBORN, 1990:03), referência comum na antropologia, o que não se deve confundir com apenas “sexos diferentes” ou ainda “coisas assexuadas”, como definido em dicionários.
Numa análise - ainda que breve - nas diferentes culturas encontra-se variadas formas de se considerar o gênero masculino e feminino. Heilborn (1990) aponta como exemplos as tribos indígenas americanas que usam como símbolo o arco e o cesto. Se o homem não caça, ele perde o direito ao arco tendo que assumir o cesto, mesmo sendo de pouca ou nenhuma identificação com o feminino. Outro exemplo é a tribo de pastores do Sudão, em que a mulher estéril passa a se portar como homem, casando-se com outra mulher que terá filhos com um homem não participante da relação, e assim as duas mulheres formam um casal, e partir daí tornam-se uma família. A fecundidade define o papel do masculino e feminino naquela cultura especificamente. Como se vê, moral, costumes, hábitos e honra, entre outros aspectos, se diferenciam em cada região, de cultura para cultura, em traços valorativos organizadores de cada sociedade.

MULHER LEITORA
Mira (2003) relembra o gênero narrativo das primeiras publicações que agradaram ao público feminino: os folhetins, no século XIX, ou mesmo antes, quando no final do século XVIII as mulheres começavam a ler, na Europa, e se identificaram com o realismo das narrativas, nos romances. Amor, romance, casamento, surgem como enredo das histórias com final quase sempre eternamente feliz. A autora cita que o romance agradou e agrada as mulheres até a atualidade por existir algo além da alienação que as faz se identificarem por questão cultural: “a expectativa da felicidade amorosa romântica torna-se parte da construção da identidade feminina” (MIRA, 2003:27).
Desta forma a mídia se aproxima da vida cotidiana das pessoas, tornando essa identificação uma característica dos gêneros, tendo o romance acentuado para o gênero feminino, assim como o pornô para o gênero masculino, por exemplo. Mira (2003) ressalta outro exemplo de questão cultural voltada aos sentidos: “assim como aos homens não são permitidas às lágrimas, às mulheres não foi ensinado o olhar erótico ou pornográfico” (MIRA, 2003:30).
Buitoni (1990) faz um trabalho de recapitulação da imprensa com uma análise das publicações dirigidas em específico à mulher. Já no início do século XX encontram-se os primeiros jornais, como o Voz Feminina, lançado em 1900, com alguma manifestação feminista, como por exemplo, direito ao voto da mulher, em campanha de 1901 e O Beijo, em 1908, criado em Araras, no interior de São Paulo, entre tantos outros - sempre com algum ar de feminismo, mas sobressaindo assuntos como beleza, comportamento feminino doméstico, educação dos filhos e assim por diante. Ela relata uma a uma, até aos dias atuais, e quase sempre o que se vê, é o retrato da mulher em segundo plano na sociedade ocidental.   Com o passar do tempo, surge uma mudança na imprensa, mais precisamente na publicidade que encontra na mulher uma consumidora pronta a qualquer sacrifício para se parecer com as artistas e modelos expostas na imprensa. Ela não percebe o quanto está sendo severamente conduzida, no que Buitoni define: “A mulher, então, não pode ser bela, sensível, alegre, por si só. Ela conseguirá essas qualidades se tiver determinados objetos. Para ser ela precisa ter” (BUITONI, 1990:196).
A autora aponta que, numa artimanha mercadológica, a mídia acabava por interferir no crescimento pessoal, enfatizando, ainda que de forma sutil, o materialismo, o capitalismo, o ter em lugar de ser, associando o ser ao ter. Isso acontece cada vez mais com o passar do tempo, enquanto sua representação como indivíduo na sociedade nada acrescenta de especial ou concreto:
A mudança que a mulher apresenta concretamente no contexto social é mínima, mesmo a mais exposta aos conceitos vinculados pelos meios de comunicação. E mesmo a imagem apresentada pela imprensa feminina inclui poucos elementos de inovação. Como dissemos, é uma tradição camuflada de nova (BUITONI, 1990:198).
Já autores como Lipovetisky (2000) citam as publicações modernas como tendo a beleza como assunto vital para o gênero feminino: “a imprensa feminina se impôs como um agente de democratização do papel estético da mulher, como uma das grandes instituidoras da beleza feminina moderna, ao lado das estrelas do cinema” (LIPOVETISKY, 2000:157). As fotografias das manequins exibindo seus corpos perfeitos e rostos maquiados são puro espetáculo a ser assistido, admirado e imitado pela sociedade feminina, que sonha ao ver as páginas de sua revista preferida. E depois do sonho, parte às compras, alimentando o consumo, a economia, a política.
Lipovetisky (2000) lista e comenta uma série de anúncios, ou melhor, apelos publicitários direcionados à mulher. A beleza ganha um espaço para todos, sem distinção de raça ou classe social e até hoje se consolida como sendo fundamental, numa busca frenética e interminável. 

Com a imprensa feminina, o planeta beleza passou da ordem tradicional-aristocrática para uma ordem midiática-publicitária-democrática. Para além da atmosfera de sonho das revistas femininas, efetuou-se um trabalho de racionalização do mundo da beleza (LIPOVETISKY, 2000:159).

Conforme pensamento de Lipovetisky (2000), em diversas publicações a mídia continua reforçando as diferenças de gêneros. Apesar de um reconhecido esforço no Ocidente moderno para que estas diferenças não sejam motivo de preconceito, ele acontece e se manifesta na própria mídia, chegando ao ponto de – direta ou indiretamente – produzir um desserviço no tocante ao gênero feminino.
CONCLUSÃO
A revista Realidade, desde o período de sua criação em 1966, manifestou uma visão justa em relação à mulher, dando-lhe voz no sentido de constantemente tê-la como foco de suas reportagens ou nas entrevistas em que o assunto era comportamento, experiências de vida, opinião e outros já mencionados. Com isso, a revista se destacava em sua abordagem diferenciada, uma vez que na sua época estes assuntos não recebiam tratamento igual. Nota-se pelo fato de que Realidade foi pioneira em seu estilo, uma das poucas mídias a considerar a mulher brasileira da forma como citada no título de uma das suas reportagens na capa da edição 10 onde explica porque a mulher é superior.
A revista prestou um serviço de informação ao seu público leitor e cumpriu seu papel ao exercer função social no jornalismo. Desta forma contribuiu para certo amadurecimento intelectual dos brasileiros que ao abrirem a revista encontravam histórias reais, um Brasil desconhecido de seu próprio povo, e lhes apresentou o perfil do jovem, da mulher, do trabalhador, do político, ou seja, sua própria identidade, embora sempre em formação. Realidade entrou para a história da imprensa brasileira como um veículo de linguagem própria, sem igual.
Faro (1999:32) se dedicou a analisar a revista Realidade em seus três primeiros anos e afirma que o jornalismo tem a capacidade e o dever de incorporar o cidadão no processo social, sendo uma mercadoria associada ao padrão cultural do leitor, então considerado o consumidor do produto notícia. O jornalismo não deve ser analisado apenas pelo aspecto técnico e sim como atividade cultural, veículo em processo histórico-social de uma nação. Por estes motivos, acredita-se que a revista Realidade ainda será produto de pesquisa por mais alguns anos. 
REFERÊNCIAS
BUITONI, Dulcília Helena. Mulher de Papel: a representação da mulher feminina brasileira. São Paulo: Sumus, 2009.

FARO, José Salvador. Revista Realidade, 1966-1969: tempo da reportagem na imprensa brasileira. Canoas: Ed. Da ULBRA / AGE, 1999. BUITONI, Dulcília Helena Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher feminina brasileira. São Paulo: Summun, 2009.
HEILBORN, Maria Luiza. “Usos e Abusos da Categoria de Gênero”, in: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.) Y Nossotras latinoamericanas? Estudos sobre gênero e raça”. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1992, p. 39-44.
LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: Permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MIRA, Maria Celeste. O masculino e o feminino nas narrativas da cultura de massas ou o deslocamento do olhar, in: Cadernos Pagu (21) 2003: PP.13-38.
REVISTA REALIDADE. São Paulo, Editora Abril, n.10 e n.11, janeiro e fevereiro, 1967.
SILVA, Carmem da. Preconceito: o bicho-papão, in: REVISTA REALIDADE. São Paulo, Editora Abril, n.11, fevereiro, 1967.


Por: Talita Godoy
29/09/2011 

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