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sexta-feira, 17 de junho de 2016

Blog ANO VI - Parte V (11/2010)




TANGO PARA TEREZA


De fato: a idéia parecia complicada e era. Um ciclo de palestras a serem elaboradas, desenvolvidas e aplicadas numa ONG de assistência social tendo como público-alvo alguns dos moradores de ocupações indevidas nos prédios abandonados no centro de São Paulo. O objetivo era levar informações úteis e práticas que pudessem servir àquelas pessoas de alguma forma. O projeto foi apresentado aos meus colegas do curso de Instrutor de Treinamento, em maio de 2010. Os cinco amigos acharam tudo lindo e queriam ajudar pois assim estaríamos colocando em prática toda a teoria aprendida no curso além de ajudar pessoas necessitadas. Tanto que o apelidamos de Projeto de mão dupla, ajudando e sendo ajudados.

Ao entrar em contato com o Leandro, coordenador da ONG e meu amigo pessoal, ele gostou e nos apoiou liberando toda a infra-estrutura que fosse preciso, até mesmo para nossas reuniões de elaboração. Era só arregaçar as mangas para pôr a mão na massa, só que bem nessa hora... que coisa, infelizmente não vai dar... eu queria tanto participar do projeto! E assim a Talita ficou em carreira solo, mas quem mandou gerar a idéia? Agora cuida que o filho é seu. Outra opção seria usar isso como desculpa, fiquei só, mas não sou de desistir, e quanto maior a dificuldade, maior o desafio.

E para relaxar a mente, fui ao teatro. Estou sempre buscando relaxar a minha mente dessa forma, é uma excelente terapia, tente para você ver! A peça da vez foi “Hipóteses para o amor e a verdade”. Soube que os atores entrevistaram pessoas que moram na região do teatro e com as suas histórias foi montado o enredo do espetáculo. Daí surgiu a idéia de investigar o meu público para verificar se o que eu havia programado estava de acordo com a realidade de vida deles. Agora sozinha eu não poderia cometer furos, a quem eu empurraria alguma eventual culpa?! Ainda vou perdoá-los, prometo!  


PESQUISA DE CAMPO
Enfim, a visita técnica. O Leandro me deixou com a Rose, uma agente social que logo de cara me fez caminhar 6 quilômetros da Sé até a rua Mauá, nos arredores da Estação da Luz. Contei a ela que no dia seguinte minhas pernas tremiam! Entramos nos cortiços, falamos com algumas pessoas e se eu entrar em detalhes aqui não paro tão cedo, então vou pular essa parte.

Deixe-me apenas contar da entrevista que fiz com a Flavia, uma jovem na casa dos 25 anos que cria sozinha 3 filhos. Ela é sustentada pelo auxílio do governo, ganha R$40,00 por criança no bolsa família. Perguntei se ela gostaria de trabalhar, ela afirmou que sim, mas está difícil conseguir emprego. Perguntei por quê. Ela respondeu que era por falta de escolaridade e me contou que agora se arrepende, mas quando era criança não levava os estudos a sério e nem se quer aprendeu a escrever. Ela lê um pouquinho, meio devagar, mas escrever é só o nome. Já a Ester, que mora do outro lado da rua, completou o ensino médio mas também está com dificuldade de conseguir emprego pois ela nota que há muita concorrência e ela precisa de qualificação. Perguntei se ela gostaria de fazer um treinamento que a preparasse para uma entrevista de emprego e ela disse que sim, "seria muito bom se tivesse isso lá na ONG", nas palavras dela com um sorriso leve e olhos arregalados, sinalizando esperança.

Achei exatamente o que procurava. O tema que seria alvo do meu novo projeto deveria se limitar a isso - entrevista de emprego. Voltei para casa e cancelei o resto. Apesar da minha boa vontade eu não tenho como abraçar o mundo. Com meus desistentes talvez desse certo, mas sozinha eu fiquei limitada. 

Mas foi ótimo estar presente ali, mesmo que eu tenha passado por momentos que ficam melhores se esquecidos, como a caminhada pelo corredor de chão perfurado, em que pelas brechas se via o andar de baixo, com a madeira que afundava a cada passo meu e da Rose. As paredes altas terminavam com as telhas que cobriam o teto, cheio de fios soltos, pendurados, prontos para dar um curto circuito. No final do corredor, uma escadinha em curva para os fundos do casarão abandonado pelo tempo. Uma poça de esgoto dava ao lugar um cheiro insuportável. A moradora nos pediu desculpas, mas avisou que já iam consertar a fossa. Um único banheiro para muitas famílias, que vivem separadas por cômodos.

Imaginei se elas tinham o que comer, mas vi nas “casas” geladeira, microondas e televisão de tela plana. Onde e como eles conseguem aquilo? Na saída, uma mocinha com o bebê no colo parou a Rose perguntando se ela poderia conseguir uma vaga na creche. Ela estava precisando arranjar outro emprego pois ali no bar não tinha registro em carteira, ela queria coisa mais segura. Ter os filhos numa creche é artigo de luxo, mas é necessidade fundamental para aqueles moradores. Alguns desistem de trabalhar por que não têm com quem deixar as crianças.


SEGUNDO ROUND
Fim do primeiro dia. Deixei passar um tempo para eu assimilar tudo aquilo, refiz a palestra e achei que era hora de voltar para uma segunda visita, e de novo verificar se o alvo agora estava correto. Pedi à Rose que me fizesse caminhar só a metade dos 6 quilômetros anteriores. Ela concordou com o meu apelo, andamos só uns 3 ou 4. Naquele intervalo entre as visitas, continuei trocando email com ela, fazendo perguntas, vendo fotos e um vídeo que me chamou a atenção, era a dona Terezinha falando muito, adivinhando coisas, perguntando o tempo todo, fazendo as pessoas rirem. No final ela mostrou a sua voz incrivelmente afinada, doce e potente. Era Fascinação. E talvez a melhor expressão para defini-la seja essa, uma pessoa fascinante como a sua música.

A Rose me levou até a sua casa: um quartinho onde cabia nos fundos um colchão, no meio um fogãozinho de duas bocas, no canto uma geladeira; nas prateleiras alguns mantimentos e artigos de higiene pessoal. Era ali, que aos 63 anos, ela viva mas fez questão de nos fazer sentar com ela e ouvir sua história do passado de glórias quando ela foi na TV cantar no Programa do Chacrinha, no Sargenteli e tantas outras apresentações. Disse que na casa dos seus pais, no interior, ela tinha álbuns de foto e troféus dos programas de calouros. A Rose sugeriu que quando ela tivesse de novo uma casa para morar ela trouxesse essas preciosidades com ela. A dona Tereza concordou pois eram recordações de uma vida glamorosa, abastada, lembranças de uma vida muito boa e feliz.

Ela nos contou do dinheiro que ganhou cantando na noite e que em pouco tempo houve uma reviravolta, foi perdendo tudo, até a família e os amigos. Atualmente ela só recebia ajuda quando cantava numa paróquia ali perto. Ela estava com pneumonia, mesmo assim fumou um cigarro inteiro na nossa frente. Eu e Rose em fumo passivo. A Rose falou com ela sobre isso, mas ela disse que havia ganhado o cigarro! E tossiu.

Hora de ir, mas antes ela fez questão de nos retribuir a visita com a sua especialidade: música. Perguntou se eu queria ouvir Fascinação, mas essa eu já tinha assistido em vídeo, pedi a outra, e ela cantou Tango para Tereza. A melodia era tão linda naquela voz, e a letra pareceu tão triste que não resisti, segurei as lágrimas, mas meu coração por dentro silenciosamente chorou!

Que pessoa impressionante, ela prendia a atenção de qualquer um com seu jeito artístico até para falar. Ela interpretou a música com a própria alma. Coisa linda de se ver e ouvir.

Desta vez o dia havia começado muito bem. Já nas visitas seguintes, vi novamente muita miséria, mau cheiro, crianças descalças pisando no lixo, algo deprimente, mas que logo deu lugar a outros pensamentos.


SILÊNCIO
Quando saímos de lá em retorno à ONG, falamos na dona Tereza. Foi uma honra tê-la conhecido e só de poder ouvi-la, já me senti bem, como se aquilo por si só já fosse uma missão cumprida. Lembram do texto sobre o "SILÊNCIO"? Ouvir é muito bom. Aposto que ela gostou de ter recebido atenção ser ouvida em dose dupla! A Rose foi muito elogiada por ela, chamada "anjo da guarda". E aquele anjo loiro estaria algumas horas depois velando o seu corpo morto, providenciando um enterro decente para ela, dona Tereza que se foi logo depois que saímos da sua casa. Contaram pra Rose que ela teve uma crise de falta de ar, tentou ir ao pronto socorro mas desmaiou na rua. Foi socorrida, mas no hospital ela veio a falecer com insuficiência respiratória. O líder da ocupação em que ela morava ligou para a Rose, ela foi até lá e definitivamente se despediu da dona Tereza.

No mesmo dia. Ela sorriu conosco, cantou especialmente para nós. Sugeriu que o Leandro organizasse um Sarau na Ong... e quem leu o meu texto sobre Sarau pode imaginar de leve o que foi que eu senti quando ouvi a sugestão dela: que idéia brilhante! Só que agora ela não está mais aqui para cantar. Será que outras Terezas virão?!

Quando fui criticada por alguns amigos sobre o trabalho na ONG, expliquei a minha amiga Dani mais ou menos o seguinte (segue parte do email que enviei a ela):

“Consegui cumprir plenamente o meu objetivo que era ver com meus próprios olhos a realidade de vida daquela gente: miséria plena. Além disso, eu disse pra Rosangela que é deprimente, cansativo, a energia é péssima, mas o lado bom é justamente o choque social. Depois de passar por ali, qualquer pessoa se torna mais humana, mais gente... menos diferente, menos "melhor" que os outros, passa a dar mais valor à sua vida, à sua condição no geral, e passa a dar menos importância a "coisinhas". A experiência foi excelente, de uma grandeza inexplicável. Eu precisava disso para compor a palestra que estou elaborando, e na verdade a primeira visita derrubou todo o trabalho que eu já tinha feito, pois eu imaginava o baixo nível, mas depois eu vi que era muito mais baixo... reelaborei, e precisei de uma última visita para conferir se agora sim eu havia atingido o ponto certo. Fica tranqüila, pois de certa forma gostei de sofrer, foi por uma causa nobre que não vai se repetir, ao menos não tão cedo. Mas se eu sentir de novo "o chamado", aí sim eu vou... disse a Deus: Eis-me aqui, Senhor! E ele me enviou. Só crendo em Deus para entender o que aconteceu no episódio da dona Tereza. Valeu a pena pois tive isso em mente, que foi um trabalho especial e que já foi concluído. Quanto as más energias, eu dei o meu melhor, passei muita coisa boa, depois precisei me recarregar, mas isso Deus fez por mim!!! Já estou ótima hoje, quase no meu normal, ainda meio pensativa, mas em ordem. Obrigada por se preocupar - pode crer que estou nos braços de Deus!!!”

E assim fui levando a sério minha tal missão na vida que é aprender e servir.

A propósito, a ONG tem muito projeto bacana, quem quiser conhecer, se envolver de alguma forma e colaborar com a sua particular responsabilidade social, pode saber mais via site:





Talita Godoy
19/10/2010



Segue o video da dona Tereza cantando Fascinação. Gravado há alguns meses, pelo Leandro, na ONG CIEDS. Abaixo, a letra da música que ela cantou para nós. Postado em homengem à dona Terezinha e à Rose, que também acho ser um anjo!!! Obrigada por me proporcionar aqueles momentos inesquecíveis no seu trabalho, que só eu sei como é grandioso. Rose: você é uma pessoa preciosa!!! Bjs com carinho, Talita.

E canta, dona Tereza, faz o que a senhora mais ama nessa vida:





Tango para Tereza


Composição: Evaldo Gouveia e Jair Amorim

Hoje alguém pos a rodar
Um disco de Gardel no apartamento junto ao meu
Que tristeza me deu

Era todo um passado lindo
A mocidade vindo na parede me dizer para eu sofrer
Trago a vida agora calma
Um tango dentro d’alma
A velha história de um amor que no tempo ficou . . .

Garçon ponha a cerveja sobre a mesa
Bandoneon toque de novo que Tereza
Esta noite vai ser minha e vai dançar
Para eu sonhar . . . .

A luz do cabaré já se apagou, em mim
O tango na vitrola, também chegou ao fim
Parece me dizer
Que a noite envelheceu
Que é hora de lembrar
E de chorar . . . . .




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